Vou explicar do começo: faço parte de uma geração que, desde a Sessão da Tarde, aprendeu a temer a tecnologia ou, pelo menos, foi ensinada a entendê-la como algo que mantém uma profunda relação de tensão com a ideia de ser humano. Entre uma lagoa azul e uma lua de cristal, nosso imaginário foi ocupado pela luta entre a natureza humana e a das máquinas.
Temos também o clássico ‘Exterminador do Futuro’ com Arnold sopa-de-letrinhas — uma inteligência artificial vinda do futuro para salvar o nosso salvador e, obviamente, a nós mesmos, da Skynet. Finalmente, já grandinhos e cansados da Sessão da Tarde, o século XX conclui com o início da trilogia ‘Matrix’ e seu imenso universo de simbolismos (uma discussão que, aliás, é brilhantemente tratada por Erick Felinto no livro ‘A religião das máquinas’).
Mas, o primeiro ciborgue que eu tenho lembrança é o Homem de Lata d’O Mágico de Oz.
Na obra de Lyman Frank Baum, o personagem que se une a Dorothy em busca de um coração era, na verdade, um lenhador que se tornara humano-máquina. Por meio do feitiço de uma bruxa, o homem foi perdendo os membros do corpo em acidentes de trabalho e um amigo substitui as partes perdidas por algumas de lata.
No entanto, entre os ciborgues da Sessão da Tarde e o primeiro ciborgue do meu imaginário infantil, há algumas diferenças. Nas metáforas incorporadas da Sessão da Tarde, há a noção de que é possível perder o domínio dos aparatos, na medida em que estes se tornam cada vez mais complexos. Já diante do processo de amputação pelo qual o Homem de Lata vai transformando-se em híbrido, há uma integração entre o que seria tratado em dois polos distintos.
De forma bem menos assimétrica do que em ‘Terminator’, humano e máquina incorporam suas características intrínsecas, a funcionalidade da técnica e a moral humana, na formação de um indivíduo. É, pois, através da habilidade humana em manipular a técnica para recriar os membros de lata que o outro homem torna-se possível e é também pela manutenção que o homem faz de sua parte máquina (colocando o óleo nas articulações para não enferrujar) que mantém seus movimentos e a funcionalidade.
O Homem de Lata me lembra que não existe o ‘puramente’ humano, no sentido em que gostamos de propor. Consequentemente, tampouco há o ‘puramente’ técnico.
Ora, se o humano é essencialmente técnica, como já nos propôs Heidegger, por que deveríamos nos preocupar com uma ideia de ‘pureza’? Outro fator relevante consiste no fato da tecnologia conter em si também a moral humana, conforme no lembra Latour, em excelente entrevista publicada no livro ‘O império das técnicas’. Conforme o sociólogo e filósofo afirma, há nos dispositivos um complexo sistema de permissões e repressões que envolve os objetos técnicos. Ele cita o caso do corrimão de uma escada, instrumento capaz de permitir um uso seguro dos degraus, bem como o cinto de segurança, um dispositivo que, quando o autorizamos/usamos, reprime o seu corpo de tornar-se um ‘objeto balístico’ em caso de colisão [esta ideia está discorrida de forma mais clara no texto de Latour, ‘Where are the missing masses? The sociology of a few mundane artifacts’]
Finalmente, nos processos de observação de constituição de dispositivos tecnológicos (naturalmente a partir do aperfeiçoamento de determinadas técnicas), é possível identificar cada vez mais o imbricamento humano-máquina na sociedade contemporânea. E, caso observemos o desenvolvimento da internet e o uso que temos feito dela, por exemplo, Latour passa a fazer cada vez mais sentido:
“Sempre existiu a ideia, provavelmente falsa, de que quanto mais se avança na época moderna, menos pessoas há nos dispositivos técnicos. É exatamente o contrário: quanto mais moderno se é, mais esses dispositivos mobilizam e interessam — voluntária ou involuntariamente — um grande número de pessoas, isto é, no fim das contas, eles se humanizam”.
E, se Donna Haraway relembra o ciborgue como metáfora para compreender o indivíduo contemporâneo, eu, na minha infância, já tinha descoberto: somos todos homens de lata.
Cândida Nobre é jornalista e publicitária, mas se encontrou mesmo em sala de aula. Mestre em Comunicação, é doutoranda do Programa de Pós-Graduação em Estudos da Mídia (PPGEM/UFRN) e professora do curso de Publicidade e Propaganda (FPB). Pesquisa sobre cultura digital, compartilhamento de produtos culturais, colaboração na rede e redes sociais digitais.
Nota: Esse artigo foi originalmente publicado em 2011, em nosso antigo Portal Nós da Comunicação. De tão atual, Cândida Nobre acabou republicando-o em sua página no Medium